Grandes empresas investem pesado para criar comunidades, que são bastante engajadas e ajudam tanto no faturamento quando no posicionamento da marca no mercado — mas pequenos empresários também apostam na estratégia.
Não ouse fazer qualquer comentário negativo nas páginas oficiais da empresa de cosméticos WePink se não quiser receber uma enxurrada de respostas de defensores da marca. A empresa conta com um exército de seguidores fanáticos, herança da base de fãs de uma de suas fundadoras, a influenciadora digital Virgínia Fonseca.
Um dos episódios mais marcantes — e que exemplifica perfeitamente o quanto os fãs da marca são fervorosos — foi o lançamento de uma base da marca em março. Na ocasião, a blogueira Karen Bachini, conhecida por fazer vídeos em que avalia a qualidade de maquiagens, foi atacada aos montes após um vídeo com críticas ao produto.
O caso chamou atenção para um lado ambíguo de ter verdadeiros defensores de uma empresa na base de clientes. Por outro lado, ter fãs tão apaixonados pode ser bastante rentável. A própria WePink diz ter faturado R$ 378 milhões em apenas dois anos de existência — uma quantia de gente grande do mercado.
E a fidelização de clientes é uma das principais estratégias de empresas para ter faturamento recorrente, muito antes de a internet entrar no jogo. Não faltam exemplos de marcas que criaram verdadeiras comunidades em torno delas, antenadas nos lançamentos e defendendo o nome da companhia a qualquer custo.
Na lista estão nomes como Lacoste, Vans, Melissa, Tommy Hilfiger, Nubank e Magazine Luiza, apenas para citar alguns. Mas o que faz um cliente passar de um simples consumidor recorrente para um defensor de uma determinada marca?
O g1 procurou empresas e os próprios clientes "fã de marca" para discutir o fenômeno.
Sensação de pertencimento
Roberto Filho (ou Bob, como prefere ser chamado), de 38 anos, é um apaixonado pela Vans. A relação já é de longa data, começou no final dos anos 90, quando ele ainda era adolescente e frequentava uma casa de shows punks, em São Paulo.
"Todas as bandas mais legais e o público, no geral, estavam calçados de Vans. Aquela faixa lateral que marca o painel do tênis me chamou atenção e me despertou o desejo de ter meu primeiro tênis da marca", conta.
Bob comprou o seu primeiro par e, pouco tempo depois, já fazia parte do grupo conhecido como sneakerheads, de viciados em tênis. Com a convivência com os demais, entendeu que aquilo tudo era mais profundo que um gosto pessoal, fazia parte de toda uma cultura.
Assim, mergulhou de cabeça na paixão, abastecida pela sensação de pertencimento. A sensação que Bob descreve é o que cria um apego emocional do cliente para com a marca, segundo especialistas ouvidos pelo g1.
É uma característica que se estende a várias outras marcas, de diversos setores. Esse é o elo comum que faz com que a pessoa se torne mais que um consumidor, mas um fã.
Raquel Scherer é gerente-geral da Melissa, outra empresa que tem uma legião de seguidores dentro e fora das redes sociais. Ela diz que a principal característica do fã da sua marca é, justamente, o vínculo emocional.
"Elas veem a marca como uma extensão da sua identidade, além de se envolverem ativamente com todos os projetos que criamos. Tudo isso gera um senso de comunidade e pertencimento que alimenta esse público e faz com que a lealdade só aumente", pontua Raquel.
A executiva explica que esses clientes que se identificam como fãs também são grandes responsáveis pela geração de receita recorrente da companhia.
"Um comportamento comum entre eles é a frequência de compra: são verdadeiros colecionadores da marca. Os melissários, como as fãs chamam seus closets onde guardam suas Melissas, têm dezenas e até centenas de produtos da marca de diferentes anos e coleções".
O Bob, fã da Vans, comprova na prática essa teoria. Além de ter uma coleção com mais de 300 pares de tênis, ele reconhece que já gastou "muito mais do que deveria" com calçados. Não que isso cause algum arrependimento: há alguns anos ele passou a investir também no sobrinho Dante, de 4 anos, que sempre ganha um par igual ao do tio para andarem combinando.
Todos são bem-vindos
Embora a sensação de pertencimento seja o principal ponto em comum entre as empresas que conquistam fãs, isso não significa que o perfil dos fanáticos é sempre o mesmo. Longe disso.
A Lacoste comprova a tese. As peças de alto padrão, famosas pelo logo de crocodilo, nasceram voltadas para tenistas. Uma tradicional camisa polo no site da loja, por exemplo, custa cerca de R$ 650.
Mas, ao longo dos 90 anos de existência, a marca passou a chamar a atenção de públicos que seus criadores jamais imaginariam. Nos últimos anos, em específico, a Lacoste virou objeto de desejo no universo do funk.
Um desses fãs é o cantor MC Hariel, de 25 anos, que conheceu a Lacoste antes de se tornar um MC, há quase 13 anos, por influência de um amigo, o Bruninho ZN. Ele conta que, de lá para cá, foi se envolvendo cada vez mais com a marca e é um apaixonado pelos produtos, assim como diversos outros artistas do funk e também os fãs do estilo musical.
Para o Hariel, a empresa se tornou um objeto de desejo e é isso que explica o sucesso da marca com a comunidade do funk há anos. "Lacoste conquistou espaço no funk por que é como um símbolo de conquista e vitória", comenta.
Mesmo que o cliente tradicional da marca tenha torcido o nariz, a empresa entendeu que o funk podia ser uma clientela importante para a empresa. Em maio, veio mais um sinal dessa percepção: para celebrar seu 90° aniversário, a marca lançou um espaço de experiências temporário para atrair a "comunidade Lacosteira", a Casa Lalá.
Foram diversas apresentações com artistas de funk, entre eles o próprio MC Hariel, que ainda se diz fã da empresa, mas também se tornou um de seus parceiros patrocinados. O Brasil foi o primeiro país a ganhar uma página regional da marca.
"O nosso objetivo sempre foi olhar com atenção para todos os públicos consumidores da marca, sem distinção. Claro, existem momentos que se ligam mais a um determinado público, mas sabemos equilibrar bem", afirma a Lacoste, em nota ao g1.
"Um exemplo disso é que no mesmo período em que realizamos a Casa Lalá, celebrando nossos 90 anos e a cultura urbana, proporcionamos também um evento para a final de Roland Garros, pilar que representa a herança da marca", prossegue.
Evento da Lacoste para fãs brasileiros, na Casa Lalá, contou com apresentação de MC Hariel para gerar identificação do público com a marca. — Foto: Torin Zanette
Evento da Lacoste para fãs brasileiros, na Casa Lalá, contou com apresentação de MC Hariel para gerar identificação do público com a marca. — Foto: Torin Zanette
Outra marca que nasceu do esporte, mas tem estratégia diferente, é a Tommy Hilfiger. Paulo Matos, diretor-geral da empresa no Brasil, afirma que a proposta da marca é a mesma desde sua origem, na década de 1980: "oferecer o clássico que se destaca".
Para ele, é justamente isso que segue atraindo clientes tão fiéis: a identificação com a proposta da marca, que não se altera (e nem quer) para se encaixar com o que está "viralizando" no momento.
Segundo o executivo, a Tommy desenvolve seus produtos "sempre olhando para a família, sem distinção de classes social ou cultura", de forma a criar um posicionamento de marca que corra de geração em geração. "A partir disso, qualquer público que se identificar é bem-vindo para a empresa".
Matos pontua, contudo, que a Tommy também faz uma curadoria para entender mais sobre seus principais tipos de fãs em cada país. Um exemplo: o atleta Paulo André Camilo virou embaixador da marca no Brasil, depois de participar do BBB 21.
Os pequenos também querem fãs
Os fãs também transformam o patamar de pequenos negócios. A empreendedora Luana Amy, de 21 anos, mudou completamente sua trajetória de vida com uma confecção própria, a LAs Clothing
A loja virtual foi lançada no Instagram em 2020, para levantar uma renda criando roupas. Além do design das peças, parte da diversão de Luana era pensar na estratégia de comunicação para vendê-las.
Ela fazia fotos com os modelos e postava em grupos do Facebook focados em moda. Quando alguém perguntava de onde era a peça, respondia com a página de sua loja.
Luana decidiu que sua empresa teria uma identidade, com peças atemporais e carregadas de um estilo mais básico e neutro. Segunda ela, as clientes sabem exatamente o que esperar de cada modelo da loja e é por isso que, muitas delas, se tornam fiéis.
Ela conta que cada lançamento é muito bem planejado com meses de antecedência e a empreendedora não tem o objetivo de criar nenhum produto "só porque está na moda".
"É algo que está no estilo delas e as clientes sabem que a LAs reflete essa personalidade. É como se a loja fosse uma das suas amigas", conta.
E essas "amigas" já trouxeram bons resultados financeiros: de outubro de 2020, quando a empresa nasceu, até outubro de 2022, o faturamento cresceu cerca de 500%, segundo a empreendedora.
Há vantagens, mas com desafios constantes
Todas as empresas com as quais o g1 conversou foram unânimes ao dizer que ter fãs é um fator muito positivo para a construção da marca. Não só: também para mantê-la relevante no quesito influência cultural e para um bom posicionamento de marca.
"Ter fãs e apaixonados pela marca é de grande valor e importância para nós. Essa paixão e lealdade impulsionam o negócio de maneira significativa, principalmente quando falamos sobre consciência de marca. Ter essa conexão com uma base realmente engajada é um dos nossos 'ativos' mais valiosos", destaca Pietro Giovanelli, da Vans.
Porém, para ter uma comunidade que passe de geração em geração, o maior desafio é manter a base de fãs engajada.
"Precisamos estar constantemente inovando nossas formas de relacionamento com os fãs. É um grande desafio manter uma comunidade ativa, pois sabemos da relação passional e da necessidade de atenção que elas têm", pontua Raquel Scherer, da Melissa.
Luana Amy, da LAs Clothing, sentiu na pele como é lidar com esse desafio da decepção dos fãs. Em um dos últimos lançamentos uma das peças se esgotou em pouquíssimo tempo. Foi o suficiente para uma onda de reclamações das fãs.
Ela conta que, via de regra, sempre sobe os lançamentos no site da loja poucos minutos antes do horário marcado para garantir o bom funcionamento do e-commerce. Dessa vez, o produto se esgotou tão rápido que frustrou quem procurou no horário combinado.
"Elas se sentiram prejudicadas porque foi postado antes do horário oficial do lançamento, como se tivessem sido enganadas por alguém em quem confiam", conta Luana.
Mas há casos de repercussão (e prejuízo) muito maior: a marca de cervejas americana Bud Light perdeu o posto de mais vendida dos Estados Unidos em maio deste ano, depois de uma ação publicitária protagonizada por uma influenciadora transexual.
Houve uma onda de protestos e um boicote em série realizado por conservadores, principal público consumidor da marca. O desagrado dessa parcela de "fãs" veio com consequências: a redução de consumo da marca fez as ações da empresa despencarem cerca de 17% em uma semana na bolsa de valores.
Comments